sábado, 28 de novembro de 2015

Uma modesta proposta para resolver o problema parlamentar português

Tal como escrevi há tempos, a nossa Constituição é confusa e pouco clara em questões nucleares como a formação de um governo. No entanto, seria possível melhorá-la com meia dúzia de modificações simples que obrigariam os actores políticos a colocar as suas cartas na mesa com antecedência e a procurar consensos entre si.

artigo 187º
" O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais."

modificação proposta:
artigo 187º
"O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, dentre três nomes propostos pela formação política mais votada nas últimas eleições legislativas. A proposta de nomes deve ser apresentada ao Presidente por cada formação política até 15 dias antes das eleições legislativas. O presidente deve nomear um desses nomes no prazo máximo de 24 horas após publicação dos resultados oficiais. No caso de a nomeação de um Primeiro-Ministro ser devida à rejeição de um programa de Governo ou moção de censura, aplica-se o disposto no artigo 192º, parágrafo 4"

artigo 192º
 "1. O programa do Governo é submetido à apreciação da Assembleia da República, através de uma declaração do Primeiro-Ministro, no prazo máximo de dez dias após a sua nomeação.
[...]
3. O debate não pode exceder três dias e até ao seu encerramento pode qualquer grupo parlamentar propor a rejeição do programa ou o Governo solicitar a aprovação de um voto de confiança. 
4. A rejeição do programa do Governo exige maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções."

modificação proposta:
"1. O programa do Governo é submetido à apreciação da Assembleia da República, através de uma declaração do Primeiro-Ministro, no prazo máximo de cinco dias após a nomeação do Primeiro-Ministro.
[..]
3. O debate não pode exceder três dias e será obrigatoriamente seguido por uma moção de rejeição/aprovação.
4. Na votação de uma moção de rejeição/aprovação de um programa de governo, não são permitidas as abstenções. A rejeição do programa do Governo (ou a aprovação de uma moção de censura) exige maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, e implica a proposta (pelos deputados que votaram favoravelmente a rejeição do programa ou moção de censura, num prazo máximo de 24 horas) de três candidatos à nomeação de Primeiro-Ministro de um novo governo, repetindo-se o disposto no artigo 187º. O presidente deve nomear um desses nomes no prazo máximo de 24 horas após recepção da proposta, repetindo-se seguidamente os passos descritos neste artigo.
5. Se após 4 rondas de formação de governo não se tiver conseguido obter a aprovação de um programa de governo, serão convocadas eleições legislativas. Se tal convocação fôr impossível, ficará em gestão o governo proposto originalmente pela formação política mais votada. Nenhum governo pode ficar em gestão por tempo superior ao estritamente necessário para a convocação de novas eleições legislativas"



Substitui-se-ia a alínea c) do artigo 195º

artigo 195º " 1. Implicam a demissão do Governo:
[...]
c) A morte ou a impossibilidade física duradoura do Primeiro-Ministro;"

por  :

"Sobrevindo a morte ou impossibilidade física duradoura  do Primeiro-Ministro, o governo continuará em funções, sem impedimento de qualquer espécie. O Presidente da República nomeará, no prazo máximo de 72 horas, um novo Primeiro-Ministro, escolhido entre os dois nomes restantes na lista que lhe foi entregue ao abrigo dos artigos 187º ou 192º. "


O que acham?

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Os double standards são inevitáveis no mundo real :-(

Não me parece que se possa ao mesmo tempo acusar o Ocidente por atacar/aplicar sanções ao Iraque/Irão/Síria/Líbia e ao mesmo tempo acusá-lo por não aplicar sanções/atacar a Arábia Saudita (ou a Líbia pós-abandono do seu programa nuclear). É verdade que a consistência e coerência ética obrigariam qualquer autoridade global a tratar essas situações da mesma forma. Essa autoridade, no entanto, não existe, e não é credível que alguma vez possa existir, dadas as diferenças naturais entre pessoas (sem falar sequer em culturas, ideologias políticas, filosóficas ou religiões).

Nunca estudei relações internacionais, mas parece-me que é o exemplo mais perfeito da "desordem social primordial", em que não existe confiança mútua, valores partilhados ou possibilidade de cooperação duradoura. E tendo cada Estado obrigações para com os seus cidadãos (e capacidades militares finitas, que obrigam a decidir qual a prioridade que se deve dar a cada um dos potenciais conflitos) , não me surpreende que a actuação de cada  Estado se reja por "interesses próprios". Afinal, se eu fosse presidente de uma democracia com forças armadas recrutadas (ou profissionalizadas) para defesa do meu Estado, o meu poder sobre elas radicaria na sua necessidade para o "bem comum" do Estado. Com que direito poderia eu dispôr das suas vidas para  intervenções militares "humanitárias" que me parecessem urgentes?

PS: O conceito de "guerra justa" é (com razão ou sem ela) utilizado popularmente como "ideal" quando se avalia ou critica a necessidade/oportunidade de qualquer intervenção por parte de potências ocidentais democráticas. As outras nações (segundo a percepção vigente) não precisam de se preocupar com isso: afinal, quando foi a última vez que se discutiu sob este prisma a justeza da intervenção do Ruanda no leste do Congo ou da Rússia na Crimeia?

PPS: Eu não acho que a "visão" ocidental do problemas seja necessariamente a mais correcta (ou que sequer haja uma visão "correcta" dos problemas), e nem sequer tento argumentar a favor ou contra alguma guerra ou ingerências nos assuntos internos de outros estados. Apenas não acho que seja a visão "mais incorrecta", e que por exemplo a existência do ISIS seja fundamentalmente culpa da actuação ocidental no Iraque em 2003 (fundamentalmente US/UK e com oposição francesa) . A culpa do ISIS é dos próprios membros do ISIS, que se radicalizaram devido a um conjunto extremamente complexo de factores entre os quais estará sem duvida o fim da repressão de Saddam sobre a maioria xiita e a consequente percepção, por parte de alguns membros da minoria sunita (dominante até então), de que se encontram numa situação injusta. Alguns enveredaram por percursos ideológicos vagamente sustentados em algumas interpretações do Corão que os levam a uma posição militante, sustentada táctica, administrativa e politicamente por antigos membros do exército baathista do Iraque (erradamente desmantelado, em vez de "purificado" , após a invasão).


Sobre o aparecimento do ISIS, há um artigo muito bom no Guardian de 15 de Setembro www.theguardian.com/world/2015/sep/17/why-isis-fight-syria-iraq

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Cavaco indigitou António José Seguro!

Uma vez que as eleições não se destinam a eleger candidatos a primeiro-ministro mas deputados, o presidente Aníbal Cavaco Silva decidiu indigitar esta quarta-feira o proeminente membro do PS (e seu antigo secretário-geral) António José Seguro como primeiro-ministro.

Instado a explicar a sua decisão, Cavaco Silva explicou que não podia em consciência indigitar António Costa, que na terceiras semana de Outubro lhe garantira ter um acordo mas afinal só conseguiu (mais de três semanas de atraso após essa garantia) um conjunto de "posições conjuntas isoladas". Por outro lado, uma vez que as "posições conjuntas" publicitadas pelo PS se realizaram entre PS e PCP/PEV/BE, e não entre António Costa e PCP/BE/PEV, a solidariedade política entre estas forças será independente da identidade do primeiro-ministro, desde que este seja um socialista credível.

Cavaco Silva confessou que pensou indigitar Mário Soares como primeiro-ministro, por este ser um socialista incontestado no partido. Só mudou de ideias porque a elevada idade de Mário Soares poderia impedir a manutenção de uma legislatura de quatro anos. Cavaco não receia que António Costa se indisponha com esta escolha, uma vez que o actual secretário-geral do PS tem dito que "O que nos separa não são lugares no Governo, que recusámos desde o início.[...] O que divide o PS da coligação de direita são as políticas programáticas".

Dizem que a culpa é da invasão do Iraque...


Com todos os defeitos que o mundo moderno tem, nunca nenhuma outra civilização se questionou tanto sobre o seu papel e sobre a justiça dos seus valores e acções como a actual civilização ocidental. Ao fazê-lo, muitos de nós passam de uma saudável posição de auto-crítica para outra, que me parece bem menos correcta, que é a de considerar que grande parte da razão para actos violentos contra os nossos símbolos e valores radica em nós, e não em quem nos ataca. Esta forma de pensar reduz a responsabilidade de quem nos ataca, tratando-os como crianças sem capacidade de valoração ética ou como inimputáveis.

Os terroristas não são autómatos que actuam simplesmente por reacção a "estímulos externos" provenientes do Ocidente. Também têm também têm motivações próprias, alheias às acções do Ocidente. Afinal nos anos 70 e 80 havia bombas em aviões, desvios de aviões, reféns em embaixadas, atentados em night clubs e não tinha havido invasão do Iraque... E por outro lado, o Vietname sofreu bastante mais com as suas guerras contra França e EUA do que qualquer país do Médio oriente, e não existe terrorismo originário do Vietname. E o Japão tinha uma cultura de militarismo suicida que não se traduziu em missões suicidas japonesas contra os EUA em retaliação pelos bombardeamentos das suas cidades e pela destruição de Hiroshima e Nagasaki no fogo nuclear.

Os criminosos do ISIS fazem o que fazem porque QUEREM. Não porque a actuação ocidental (por muito criticável que seja) os leve inexoravelmente a isso.

As ditaduras produtoras de petróleo são SEMPRE inimputáveis

A sorte grande na lotaria das relações internacionais saiu aos autocratas que governam países produtores de petróleo: se forem atacados/desestabilizados por ocidentais, parte da opinião pública ocidental criticará essas acções como "tentativa de pilhagem dos seus recursos naturais". Se não forem atacados, desestabilizados, alvo de sanções, ou se forem apoiados como forma de conter o aparecimento de alternativas de poder mais perniciosas, parte da opinião pública ocidental (largamente sobreponível com a anterior) criticará a não-intervenção como "apoio a ditaduras devido ao seu controlo sobre o petróleo". Aconteça o que acontecer, a culpa é do Ocidente.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Primer on current Portuguese politics #PortugalCoup

Current leader of Socialist Party (Costa) kicked previous leader (Seguro) after the 2014 elections to the European Parliament won by Socialist Party by a small margin (31.5% vs. 27.8% from the ruling center-right coallition). Costa claimed such a victory was "teeny-weeny" and a solid absolute majority by PS (obtainable in parliament with 40-42% of the votes in the general election) would be a cakewalk with a proper leader (himself).

During the 2015 campaign, Bloco de Esquerda and Communist party spent as much time attacking Partido Socialista as they did attacking canter-right coallition. In turn, Partido Socialista, while seeming to flirt with Bloco de Esquerda, campaigned with the aim of obtaining a majority by itself. In the last week of the campaign, when polls predicted a 38-40% win for the ruling coallition, at least one of PS' MPs claimed that "to vote for Bloco or Communist Party" would be a vote for the center-right coallition".


Election results:
  • Center-right coallition (pro-free market, pro-EU, pro-balanced budget, favoring relinquishing State-owned enterprises) got 38% of the vote. (107 MP in 230)
  • center-left Partido Socialista (pro-"freeish" market but against relinquishing State-owned enterprises, pro-EU, pro-Keynesian policies and severely against current austerity measures aimed at obtaining a deficit <3% GDP ) got 32% of the vote. (86 MP)
  • former trotskyists/maoist from Bloco de Esquerda (favoring nationalizations, against balanced budget) got 11 % (19 MP)
  • Communist party (against Euro, favoring nationalizations, against balanced budget) got 8%. (17 MP)
The Portuguese Constitution (which I readily admit is badly written, unclear and internally conflicting) states that the President should choose a PM "taking into account election results". In the day following the election, the President called on the center-right coallition leader (Coelho) to attempt to form a majority solution in the Parliament. Costa rebuffed Coelho (after Coelho proposed adopting about 20 of the proposals of PS's election platform and offered to accept any further proposals provided that they did not conflict with the need for a deficit under 3% of GDP) and initiated a series of meetings with Bloco and Communist party. No written agreement came from those meetings, though Costa and Bloco claimed they were coming close to a solution and Communists said they would not vote against Costa taking the PM position.

On October 22, the President (after talking to all leaders) appointed Coelho as PM since there was at the time (and there is still not) any written agreement between PS, Bloco and the Communists. He considered that there were many more similarities between PS and the center-right coallition than between PS and the far-left parties, specifically noting that the far-left parties disagree with 80% of the voters on the stance towards the economic and fiscal constrains regarding membership in the Eurozone.

In short: the initial report by the Telegraph's Ambrose Evans-Pritchard severely misstated the ongoing political situation. Their anti-EU biases got the best of them.

sábado, 24 de outubro de 2015

Deve-se impedir a participação de algum partido no governo?

Dois parágrafos do discurso de Cavaco Silva a 22 de Outubro de 2015 foram recebidos com manifestações de horror e rasgar de vestes. Ok, se calhar estou a exagerar um pouco... Foram considerados insultuosos e uma desconsideração a dois partidos que obtiveram, em conjunto, cerca de 18% dos votos. Nas palavras de Jorge Reis Novais, porfessor de Direito em Lisboa, e citados no Público:
“Não há portugueses de primeira ou segunda, os partidos na Assembleia da República são todos democráticos, e o facto de haver formações que discordam da forma como a construção europeia foi conduzida ou como a união monetária foi construída é indiferente, desde que respeitem os vínculos assumidos pelo país, pelo que têm toda a legitimidade em participar em qualquer solução governativa”

Curiosamente, estes argumentos nunca são usados contra a a política de "cordon sanitaire" vigente em França em relação a alianças com a Frente Nacional, ou na Bélgica em relação ao Vlaams Blok. Em nenhum desses casos vi qualquer um dos partidos parlamentares portugueses lamentar essa "desconsideração pelos votos dos eleitores". Pelo contrário o PS advogou explicitamente essa política em relação a pelo menos um partido: em 1999, o segundo partido mais votado nas eleições austríacas (ÖVP) preparou (após o falhanço das negociações entre o primeiro partido (SPÖ, socialista) e si próprio devido às relações com os sindicatos) um acordo de governação com o terceiro partido (FPÖ, populista liderado por um personagem grotesco que homenageara soldados austríacos das SS). O governo socialista português, que na altura presidia à União Europeia, apressou-se a decretar sanções contra a Áustria devido à possibilidade da entrada do FPÖ no governo. Isto é muito mais grave do que o que se passou em Portugal, porque Cavaco tem legitimidade eleitoral para intervir nas decisões governativas portuguesas, ao contrário do que se passava entre o governo de Guterres e a Áustria. Aí se mostrou definitivamente que noentender do próprio PS há partidos em que "se pode votar, mas não podem governar". 

Não duvido da justeza da política de "cordon sanitaire" em relação à Frente Nacional e a partidos xenófobos, anti-semitas, racistas ou (neo-)fascistas. Aliás, a própria Constituição Portuguesa diz (com o beneplácito de PS, PCP, BE, etc) que não são permitidos partidos racistas ou fascistas, o que lhes retira legitimidade para dizer que "todas as formações políticas têm direito a formar governo". Apenas considero que, tal como esses partidos, também aqueles partidos que justificam o terrorismo da ETA,  que após a libertação de pessoas feitas reféns pelas FARC só conseguem falar do suposto "neo-fascismo" do governo colombiano , ou que lamentam a queda do muro Berlim por representar o "fim do único estado alemão anti-fascista" devem ter o direito de expressão, mas não o direito a governar, que é sempre um exercício de poder sobre a liberdade dos seus concidadãos, e dos impostos que lhes foram retirados para a prossecução do bem comum. E quem defende a ETA, a URSS ou a RDA tem em comum com o fascismo e a xenofobia, pelo menos, uma concepção bizarra do que é o bem comum.


Referências: Lonnie Johnson (2000)  "Austria's New ÖVP-FPÖ Government and Jörg Haider" , consultado em 24/10/2015

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

E se os políticos ganhassem o salário mínimo?

Tendo em conta os insultos e julgamentos de carácter que qualquer polítiico (de qualquer partido) ouve quando toma uma medida impopular (e acreditem que qualquer medida política vai ter sempre um público entre o qual é impopular) e u não iria para a política nem que me pagassem o dobro do que ganho agora. E portanto desconfio seriamente de qualquer um que o quisesse fazer pelo salário mínimo: ou é masoquista ou está tão certo da sua verdade e desejoso de a impôr que pouco o distinguiria de um aspirante a ditador.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

O que vais recordar do teu pai quando ele partir?


O meu pai não foi um homem importante. Não era alguém que se fizesse notar entre outros pela sua autoridade, influência, ou estatuto. Não progrediu na sua carreira profissional. Trabalhou sempre como empregado de armazém, ganhando pouco mais do que o salário mínimo. Mas com o seu esforço, as horas extraordinárias que fazia, e o trabalho da minha mãe como costureira a dias e conseguiu que nunca faltasse o necessário para os seus dois filhos, mesmo que por vezes ele e a minha mãe tivessem de ficar com as partes menos nobres do peixe ou da carne nas nossas refeições. Nunca tivemos conforto material em casa, nem fizemos férias fora de casa, mas com uma gestão impecável (que não consigo sequer começar a imitar)  conseguiram poupar o suficiente para nos mudarmos (por altura dos meus 10 anos) da casa alugada de 30 m2 onde nasci para um apartamento de 70-80 m2 que compraram com um empréstimo bancário. 

A sua maior alegria eram os seus filhos (e depois os netos):  os seus olhos iluminavam-se ao escutar as nossas conversas, vendo na cumplicidade entre os filhos um reflexo dos valores que nos inculcou, e notava-se o orgulho que sentia por nós e pelo nosso desempenho académico e profissional: disse-me um dia que se lhe tivessem dito em 1980 que os seus  filhos iriam ser Engenheiro Electrotécnico e docente universitário doutorado em Química teria achado isso uma impossibilidade, algo só acessível a gente de outro estrato social ou económico... 

O meu pai não foi um homem importante. Mas em todo o lado onde se movia deixava alegria, e a sua personalidade expansiva (que deixava os filhos adolescentes por vezes um pouco "emvergonhados" do seu "cota") espalhava boa disposição. E o seu coração de ouro permitia-lhe criar amigos fortes em todo o lado: fosse entre os companheiros da piscina, na paróquia ou entre os funcionários do centro de Dia que frequentava após se ter de reformar pelos seus problemas de saúde. Sim, porque o meu pai sofria de doença pulmonar obstrutiva crónica e tinha por vezes crises intensas, apesar de não querer mostrar aos filhos a gravidade exacta da situação.

Umas semanas antes de se iniciar a quaresma do seu internamento, e quando eu não suspeitava sequer que a sua doença o levaria tão proximamente, tive ocasião de lhe dizer, em privado, com todas as letras, que ele era o meu herói. De lhe mostrar o quanto valorizava tudo o que por nós fez, em circunstâncias economicamente difíceis. E de como eu sentia o seu amor por nós. 

O meu pai já não está entre nós. Depois de um percurso literalmente quaresmal nos cuidados intensivos e enfermarias do Hospital, faleceu na Quinta-feira Santa deste ano de complicações da sua doença pulmonar obstrutiva e falência corporal generalizada. Quando o visitávamos, os seus belos olhos azuis brilhavam e apesar de pouco poder falar (e de nas últimas semanas estar desorientado e por vezes delirante) notava-se todo o seu amor, e a vontade de nos beijar. 

Quando a Morte levou o meu pai, não chorei de tristeza. Fiquei com pena que ele não tivesse podido continuar a acompanhar o crescimento dos netos, a gozar o seu papel de avô babado e amigo, mas não chorei por mim: tudo o que ele me deu continua comigo, e se hoje sou um pai generoso, mais não faço do que seguir o exemplo que me deu. Despedi-me dele numa paz intensa, porque não deixei coisas por dizer... E porque o que lhe disse era uma mensagem de gratidão, de apreço, e de valor pela sua vida.

O meu pai não era um homem importante. Mas foi o homem mais importante de todos. Se tiverem um homem assim na vossa vida, digam-lho antes que seja tarde demais. E a despedida, quando tiver de ocorrer, será mais suave, talvez até mais fácil de fazer.






 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Certos burros mudam de opinião...

Compare-se o que Vital Moreira disse a 2 de Outubro:


"Embora sem base em nenhuma declaração pública do PS, não faltou quem veiculasse publicamente a possibilidade de um entendimento pós-eleitoral de governo à esquerda, envolvendo os socialistas e os partidos à sua esquerda, que até agora sempre fizeram questão em se manter à margem de qualquer responsabilidade governativa.
Essa especulação era obviamente pouco credível, não somente por não ser verosímil mas também porque, mesmo que o fosse, não é tradição do PS deixar saber previamente as suas opções pós-eleitorais. Mas o propósito dessa especulação, seguramente oriunda da central de intoxicação política da direita, só podia ser malévolo."

com o que disse 8 dias depois:

"Um entendimento de governo com o PCP e o BE na hipótese de a direita não ter maioria absoluta estava desde o início na equação pós-eleitoral do líder do PS. Costa não somente nunca a excluiu como a admitiu de vários modos inequívocos no seu conjunto. Não houve nenhuma reserva mental. Pagou mesmo um custo eleitoral por ter mantido publicamente essa hipótese em aberto."

Coerência...? Para quê? Como Walt Whitman, Vital Moreira é grande e contém multidões. Nada tenho contra o facto de Vital Moreira mudar de opinião. Não precisava era de fingir que a sua opinião não tinha mudado, nem de querer mudar os factos de "especulação malévola" para "admissão inequívoca" em apenas oito dias.

Portugal parece-se muito com a FIFA. Mas não é só pelo motivo que estão a pensar...

"Tudo o que pode ser escrito pode ser escrito claramente." (autor desconhecido)

Há alguns anos resolvi ler as "Leis do Jogo" de futebol, para tentar compreender a diferença entre um comportamento mereceder de falta, cartão amarelo ou cartão vermelho. Muito me surpreendi ao ver que entre as 17 regras se encontram descrições detalhadas do procedimento a realizar quando a bola deve ser reposta em jogo pela mão do árbitro  (uma situação que quase nunca se verifica no jogo moderno) mas apenas se encontram descrições vagas e extraordinariamente subjectivas da diferença entre uma falta e um cartão amarelo. As leis do Jogo não foram escritas ontem: têm século e meio de idade, e foram já revistas oito vezes. Os cartões amarelos e vermelhos foram introduzidaos em 1970, e houve várias oportunidades para clarificar as regras. Concluí então que tal indefinição só podia ser uma decisão voluntária, destinada a criar oportunidades de "ruído" e ambiguidade, quiçá até de manipulação  ("preservar a magia do jogo", na curiosa tradução usada pelos "responsáveis" pelo futebol).

Sinto algo muito semelhante ao ler os parágrafos da Constituição da República Portuguesa em que se trata da nomeação e demissão do governo e sua relação com a composição da Assembleia da República. Os ilustres autores do augusto texto que rege a nossa polis conseguiram a invejável proeza de, apesar dos muitos parágrafos (dispersos por várias secções) dedicados a este assunto, deixar em completa indefinição o procedimento concreto a seguir :

Pelo artigo 187º, o Primeiro-Ministro é nomeado "tendo em conta os resultados eleitorais"... Nada mais é dito quanto à sua escolha: não tem de ter sido eleito deputado, não tem de ser líder ou membro do partido mais votado (ou de qualquer outro), nada!! Fica ao critério do Presidente (deve ser para "preservar a magia da democracia").

O artigo 195º diz que a rejeição de um programa de Governo implica a demissão do governo. Pelo artigo 186º , o governo rejeitado fica em gestão até posse de um novo governo. Nada é dito quanto ao prazo de formação do novo governo, nem quanto à escolha de um novo primeiro-ministro. Pode ficar em gestão até às legislativas seguintes, sem contradição com o texto da Constituição.  E sem contradição se pode, pelo contrário, voltar a aplicar o artigo 187º (o Primeiro-Ministro é nomeado "tendo em conta os resultados eleitorais"...)  com toda a sua ambiguidade, eventualmente convidando um deputado do segundo partido mais votado a ser Primeiro-ministro de um governo em que esse partido se junte ao partido mais votado, cujo governo tenha acabado de ser derrubado.

Os notáveis constitucionalistas e jurisconsultos esgrimirão argumentos a favor de uma ou outra interpretação, mas uma Constituição que (apesar de conter mais de 290 artigos),  exige especialistas para interpretar algo tão fundamental como a escolha de um Governo só pode estar mal-escrita. Como as "Leis do Jogo" da FIFA....

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Entregues à bicharada (II)

Todas as opções indicadas no post anterior são igualmente legítimas mas apenas uma pode ser implementada, e é por  isso que, ainda antes de haver eleições, se estabeleceram regras determinando a ordenação do processo pós-eleitoral.

Em algumas Constituições, a regra poderá impôr que o partido mais votado seja o único a poder propôr uma solução (quer aliando-se formalmente a algum dos outros num governo ou assegurando a abstenção de um número suficiente de opositores em votações-chave). Noutras Constituições, poderá haver a possibilidade de  passar para o segundo partido mais votado após se verificar a impossibilidade de uma dessas soluções, etc.


Independentemente dos pormenores constitucionais (i.e. quem propõe o governo, quantas votações parlamentares são exigidas até se concluir que o governo anterior continua em gestão por impossibilidade de se formar um novo governo, etc.), parece-me claro que a escolha de uma solução governativa deve passar pela substância dos programas de cada um, não apenas de um "rótulo" supostamente agregador, uma vez que o espaço das opções políticas não é unidimensional (esquerda-direita) mas contém pelo menos quatro eixos:

  • liberdade económica/regulação
  • papel do Estado na redistribuição de bens
  • magnitude da esfera de participação/monopólio do Estado
  • liberdade individual/valores comunitários
Na situação actual (15 de Outubro de 2015) não está provado que o PS se encontre substancialmente mais perto do BE/PCP do que do PSD/CDS se levarmos em conta estes quatro eixos. Suspeito que o contrário se verificará... Não seria bom que algum cientista social ou político elaborasse um questionário simples (uma pergunta por eixo) e o aplicasse aos eleitos e a uma faixa representativa de eleitores?.... De certeza que há estudantes à procura de temas interessantes para teses de mestrado em Ciência Política. Fica a proposta!

Entregues à bicharada

As eleições realizadas entre os animais de um jardim zoológico forneceram os seguintes resultados:
  • Partido dos mamíferos : 39 deputados
  • Partido dos répteis: 9 deputados
  • Partido das aves:  41 deputados
  • Partido dos mamíferos bípedes: 11 deputados
  • Partido dos ornitorrincos: 2 deputados
O partido das aves venceu, mas nenhum partido obteve maioria.  As aves podem governar sozinhas, desde que consiga que um número suficiente de adversários se abstenha em votações chave. Mas também se  pode argumentar que o segundo partido mais votado (partido dos mamíferos), como  maior representante do "bloco dos animais que secretam leite" tem o "dever ideológico" de propor um "grande governo de convergência láctea", e que essa é a opção que melhor assegura a representação do eleitorado. No entanto, o mesmo argumento se poderá apresentar para muitas outras alianças que incluam qualquer um dos dois partidos mais votados:


59 deputados: aliança sem penas (mamíferos + ornitorrincos + mamíferos bípedes + répteis)
52 deputados: coligação ovípara (répteis + aves + ornitorrincos)
52 deputados: aliança bípede (aves + mamíferos bípedes)
52 deputados: convergência láctea (mamíferos + ornitorrincos + mamíferos bípedes)


E agora??

Qual das possíveis soluções é mais respeitadora do eleitorado?








terça-feira, 6 de outubro de 2015

É proibido discriminar...

A 24 de Setembro, a Fundação Ciência e Tecnologia enviou uma mensagem a todas as instituições científicas portuguesas, obrigando todas instituições apoiadas directa ou indirectamente por si praticar uma política não discriminatória. O texto indica que "[...] nenhum candidato/a pode ser privilegiado/a, beneficiado/a, prejudicado/a ou privado/a de qualquer direito ou isento/a de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical.".



Segundo a letra do texto, uma instituição apoiada pela FCT que pretenda contratar um investigador para um projecto científico em plantas não pode preferir um Doutorado em Biologia a um Licenciado em Estudos Alemães  (discriminação em razão de instrução) ou organizar a partilha de tarefas num projecto de forma a que um colaborador com problemas de mobilidade fique isento da obrigação de realizar trabalho de campo (isenção  de um dever por doença crónica), ou até deixar de contratar alguém "apenas" porque essa pessoa não consegue comunicar com a equipa de trabalho ou com a população em estudo (discriminação em função da língua) ou porque provou repetidamente ser  incompetente (discriminação por capacidade de trabalho reduzida).  Suponho que para evitar a "discriminação em razão de instrução", as seriações dos candidatos serão doravante entregues a uma lotaria.

Dir-me-ão que não é esse o "espírito do texto", mas é essa com certeza a "letra do texto". E se a letra da lei não é importante, como poderemos saber a intenção do legislador: consultando  as entranhas dos frangos?

sábado, 3 de outubro de 2015

Um outro olhar sobre a instituição jurídica do casamento


As acções do Estado não devem depender da existência, ou do tipo, de relações sexuais entre indivíduos. Quando o Estado se intromete na instituição pré-política que é o casamento,  está a atribuir direitos diferentes dos normais a duas pessoas apenas porque elas têm (ou se supõe que tenham) relações sexuais um com o outro. 

Isto parece-me fortemente discriminatório em relação a dois indivíduos que vivam juntos e não têm relações sexuais (por exemplo: dois irmãos, uma filha que vive com a mãe, religiosos consagrados, amigos que partilham uma casa, etc...), e uma intromissão do estado na vida íntima dos indivíduos. Um contrato alargado de economia doméstica (como o existente p. ex. na Holanda, com a figura jurídica do "samenwonen") pode incluir todas estas possibilidades, e poderá conceder a generalidade dos direitos que normalmente se obtêm com o casamento sem correr o risco de confundir realidades distintas.


O único motivo para o casamento ter um estatuto diferente é o facto de poder perpetuar a espécie (por muito politicamente incorrecto que isto possa ser). Isto é algo que o distingue de todas as outras uniões, e o motivo para a sociedade ter interesse em favorecer este tipo de contrato. Hoje em dia, este contrato tem várias formas e nomes ("união de facto", "casamento civil", "casamento católico"..) mas a sua importância social e política (em qualquer das suas formas) advém do facto de, potencialmente, poder dar origem ao nascimento de crianças. Considero por isso que o Estado  deve conceder benefícios a todos os casais (heterossexuais ou homossexuais) que têm a responsabilidade conjunta pela educação e proteção de crianças, e só a esses.


Adicionalmente, a Concordata entre o Estado português e a Santa Sé, ao atribuir força legal ao  sacramento católico do Matrimónio acabou por introduzir uma injustiça que penso que muita gente não nota:  os crentes católicos que desejam celebrar o sacramento do Matrimónio não podem escolher, por exemplo, o regime de "união de facto", ou até ausência de contrato civil, porque o sacerdote celebrante tem a obrigação (imposta pela Concordata) de enviar o assento do matrimónio para o Registo Civil, que em contrapartida tem a obrigação (imposta pela mesma Concordata) de estabelecer entre os contraentes o contrato matrimonial. Um não-crente tem a opção de escolher o regime fiscalmente mais favorável para a sua situação particualr, mas um católico sincero não a tem...

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Em louvor da abstenção

Em todas as eleições, os abstencionistas são acusados de preguiça, indiferença pelo bem comum ou irresponsabilidade. Os eleitores que se dirigem em massa às secções de voto, independentemente da razão, são aplaudidos como participantes activos e dignos das discussões públicas mesmo que só coloquem a cruzinha a fim de tentarem obter um governo que lhes forneça um aumento de benefícios, um lugarzinho na autarquia para o afilhado ou uma auto-estrada.


Jason Brennan publicou uma interessante reflexão quanto às exigências éticas do voto. Argumenta (e quanto a mim, com razão) que o voto implica uma escolha que terá sempre consequências para os nossos concidadãos, e por isso só é moralmente correcto  exercer esse direito se estivermos moralmente seguros de que as consequências do nosso voto serão benéficas não só para nós mas para a sociedade em que nos inserimos.

Isto implica, entre outras coisas, que um abstencionista pode ser muito mais digno de aplauso do que um eleitor qualquer: quem não vota não está a tentar impôr nenhuma política (certa ou errada) aos seus cidadãos, ao passo que um eleitor que não tenha estudado os problemas pode (mesmo com as melhores intenções) estar a contribuir para onerar injustamente os outros com más consequências da sua opção política. A isto se junta outro problema: a complexidade das decisões legislativas e executivas nas democracias modernas muito provavelmente impede que qualquer eleitor ou candidato possa com segurança prever as consequências de uma actuação política.

O que vou fazer nestas eleições? Vou votar, mas não por achar que o destinatário do meu voto tenha propostas brilhantes para Portugal. Simplesmente considero, em consciência, que as consequências das suas propostas são bastante menos onerosas do que as de qualquer outra formação política.

Preferiria, no entanto, que uma decisão mais "pura" fosse possível: que o Estado tivesse de tomar menos decisões, que estas fossem circunscritas a bastante menos áreas, e que tivéssemos  todos a humildade epistemológica suficiente para admitirmos que uma sociedade com 10,6 milhões de indivíduos é demasiado complexa. E num sistema complexo o primeiro passo para a sabedoria é interferir em poucas áreas, porque existem muito mais formas de estragar um sistema em equilíbrio do que formas de o melhorar.


  

Poder e liberdade de escolha

Temos eleições este Domingo. Independentemente do resultado, teremos pessoas a queixar-se dos níveis de abstenção, da ingenuidade dos portugueses que votaram de forma diferente da que gostaria,  a queixar-se da qualidade da democracia, e da falta de preocupação com o bem comum. Mas faltará, muito provavelmente, alguém que lembre que as diferenças políticas não são devidas ao egoísmo, desinteresse  ou má-fé dos que discordam connosco. As discordâncias políticas vêm simplesmente do facto de cada um de nós ter diferentes concepções do que é o melhor para uma sociedade. Queixar-se da "Direita que protege os ricos" ou da "Esquerda que nos quer dependentes do Estado" é o primeiro passo para impedir a salutar discussão de um caminho comum.


A única coisa em que todos os intervenientes políticos concordam é que "dar o poder aos outros" é meio-caminho andado para o descalabro. Seria portanto lógico que todos concordassem em limitar o poder do Estado: afinal, a influência perniciosa dos "outros" será tanto menor quanto menor fôr o alcance da sua actividade legislativa.

 Sou por isso minarquista. Gostaria de um estado limitado às funções que não podem ser desempenhadas pelas outras estruturas de uma sociedade, ou seja, apenas dedicado à segurança pública, administração da justiça e defesa. Tudo o resto pode ser feito, com muito maior liberdade, por todos nós: cooperativas de professores, mutualização de riscos, ligas de socorros mútuos, etc.

Diz-se por vezes que estas tarefas são demasiado importantes para serem entregues  à livre-iniciativa, e que os cidadãos devem ser protegidos de eventuais más escolhas induzidas por publicidade. Mas se acreditamos que os cidadãos são suficientemente maduros para decidirem a quem devem conceder o poder discricionário de um Estado hiper-legislador que afecta as vidas de todos os seus concidadãos, também temos de admitir que são capazes de escolher o melhor para as suas vidas.