terça-feira, 20 de outubro de 2015

O que vais recordar do teu pai quando ele partir?


O meu pai não foi um homem importante. Não era alguém que se fizesse notar entre outros pela sua autoridade, influência, ou estatuto. Não progrediu na sua carreira profissional. Trabalhou sempre como empregado de armazém, ganhando pouco mais do que o salário mínimo. Mas com o seu esforço, as horas extraordinárias que fazia, e o trabalho da minha mãe como costureira a dias e conseguiu que nunca faltasse o necessário para os seus dois filhos, mesmo que por vezes ele e a minha mãe tivessem de ficar com as partes menos nobres do peixe ou da carne nas nossas refeições. Nunca tivemos conforto material em casa, nem fizemos férias fora de casa, mas com uma gestão impecável (que não consigo sequer começar a imitar)  conseguiram poupar o suficiente para nos mudarmos (por altura dos meus 10 anos) da casa alugada de 30 m2 onde nasci para um apartamento de 70-80 m2 que compraram com um empréstimo bancário. 

A sua maior alegria eram os seus filhos (e depois os netos):  os seus olhos iluminavam-se ao escutar as nossas conversas, vendo na cumplicidade entre os filhos um reflexo dos valores que nos inculcou, e notava-se o orgulho que sentia por nós e pelo nosso desempenho académico e profissional: disse-me um dia que se lhe tivessem dito em 1980 que os seus  filhos iriam ser Engenheiro Electrotécnico e docente universitário doutorado em Química teria achado isso uma impossibilidade, algo só acessível a gente de outro estrato social ou económico... 

O meu pai não foi um homem importante. Mas em todo o lado onde se movia deixava alegria, e a sua personalidade expansiva (que deixava os filhos adolescentes por vezes um pouco "emvergonhados" do seu "cota") espalhava boa disposição. E o seu coração de ouro permitia-lhe criar amigos fortes em todo o lado: fosse entre os companheiros da piscina, na paróquia ou entre os funcionários do centro de Dia que frequentava após se ter de reformar pelos seus problemas de saúde. Sim, porque o meu pai sofria de doença pulmonar obstrutiva crónica e tinha por vezes crises intensas, apesar de não querer mostrar aos filhos a gravidade exacta da situação.

Umas semanas antes de se iniciar a quaresma do seu internamento, e quando eu não suspeitava sequer que a sua doença o levaria tão proximamente, tive ocasião de lhe dizer, em privado, com todas as letras, que ele era o meu herói. De lhe mostrar o quanto valorizava tudo o que por nós fez, em circunstâncias economicamente difíceis. E de como eu sentia o seu amor por nós. 

O meu pai já não está entre nós. Depois de um percurso literalmente quaresmal nos cuidados intensivos e enfermarias do Hospital, faleceu na Quinta-feira Santa deste ano de complicações da sua doença pulmonar obstrutiva e falência corporal generalizada. Quando o visitávamos, os seus belos olhos azuis brilhavam e apesar de pouco poder falar (e de nas últimas semanas estar desorientado e por vezes delirante) notava-se todo o seu amor, e a vontade de nos beijar. 

Quando a Morte levou o meu pai, não chorei de tristeza. Fiquei com pena que ele não tivesse podido continuar a acompanhar o crescimento dos netos, a gozar o seu papel de avô babado e amigo, mas não chorei por mim: tudo o que ele me deu continua comigo, e se hoje sou um pai generoso, mais não faço do que seguir o exemplo que me deu. Despedi-me dele numa paz intensa, porque não deixei coisas por dizer... E porque o que lhe disse era uma mensagem de gratidão, de apreço, e de valor pela sua vida.

O meu pai não era um homem importante. Mas foi o homem mais importante de todos. Se tiverem um homem assim na vossa vida, digam-lho antes que seja tarde demais. E a despedida, quando tiver de ocorrer, será mais suave, talvez até mais fácil de fazer.






 

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